A década de descobertas do Gaia: desvendando as complexidades da nossa Galáxia

Ilustração do satélite Gaia da ESA a observar a Via Láctea. A imagem de fundo do céu é compilada a partir de dados de mais de 1,8 mil milhões de estrelas. Mostra o brilho total e a cor das estrelas observadas pelo Gaia, divulgados como parte do EDR3 (Early Data Release 3) do Gaia em dezembro de 2020.
Crédito: satélite – ESA/ATG medialab; Via Láctea – ESA/Gaia/DPAC; reconhecimento – A. Moitinho

O telescópio espacial Gaia da ESA foi lançado a 19 de dezembro de 2013 e tem estado a estudar os céus desde 2014. Durante este tempo, a missão mudou a nossa compreensão da Via Láctea, desvendando a sua forma e estrutura e revelando como as fusões afetaram as estrelas que chamam lar à nossa Galáxia.

Apesar dos muitos anos passados a observar o cosmos com telescópios cada vez mais potentes, ainda há muito para aprender sobre a Via Láctea. Não podemos sair da nossa Galáxia para ter uma visão externa e completa da sua forma e propriedades, como fazemos quando estudamos outras galáxias. Estamos inseridos nela, pelo que estamos limitados a mapear a Via Láctea de dentro para fora – e a partir de um único ponto de vista.

No início do milénio, tornou-se claro que, para compreender as complexidades da nossa Galáxia, precisávamos de dados precisos e abrangentes e de uma missão espacial dedicada e altamente avançada para os recolher. É aqui que entra o Gaia. Desde que começou a vigiar os céus em 2014, o satélite compilou um conjunto de dados inigualável sobre as posições, distâncias e movimentos de cerca de 1,5 mil milhões de estrelas, permitindo aos investigadores aprofundar a estrutura passada e atual da nossa Galáxia.

“As descobertas do Gaia representam uma mudança radical na forma como compreendemos a Via Láctea. É espantoso o que esta missão descobriu num espaço de tempo relativamente curto”, afirma Timo Prusti, cientista do projeto Gaia na ESA. “O Gaia foi concebido unicamente para mapear os objetos celestes à nossa volta. A missão está a construir uma visão mais detalhada e completa da Via Láctea, e esta visão está a mudar fundamentalmente o que pensávamos saber sobre a nossa Galáxia natal.”

Este resumo apresenta apenas algumas das principais descobertas que o Gaia fez na última década.

Nesta imagem, vemos a Via Láctea como se estivéssemos a pairar sobre ela. Podemos admirar a grande estrutura em espiral da nossa Galáxia na sua beleza deslumbrante e identificar claramente as diferentes partes: uma barra central brilhante com vários braços espirais à sua volta. O Sol situa-se na periferia da imensa espiral, a 26.600 anos-luz (8200 parsecs) do centro, em direção à parte inferior desta imagem. As anotações dão os nomes e marcam a localização dos braços espirais.
Crédito: ESA/Gaia/DPAC, Stefan Payne-Wardenaar

“Pesando” a Via Láctea

A determinação da massa da Via Láctea é uma tarefa complicada. Existem múltiplas partes complexas da Galáxia e múltiplas formas sofisticadas de as “pesar”, o que resulta numa incerteza significativa.

O material da Via Láctea está espalhado por uma grande área, estendendo-se muito para além do disco estelar visível da Galáxia. Esta parte alargada da Via Láctea existe sob a forma do chamado halo de matéria escura – uma vasta coleção de material que parece ser dominada por matéria escura invisível.

Este halo está a ser estudado em profundidade pelo Gaia, para compreender a quantidade de matéria escura que aí se encontra e a sua distribuição pelo espaço. Os cientistas estão a usar o Gaia para explorar objetos dentro deste halo, longe do disco da Via Láctea, incluindo correntes estelares e detritos, enxames de estrelas e galáxias anãs. As galáxias anãs contêm, no máximo, alguns milhares a alguns milhares de milhões de estrelas e mais de 50 delas orbitam a Via Láctea como satélites, sendo descobertas mais todos os anos. Uma vez que estes objetos se encontram tão longe, precisamos das observações precisas do Gaia para determinar as suas posições e movimentos (astrometria). Em alguns casos, os dados do Gaia são complementados por observações específicas do Telescópio Espacial Hubble da NASA/ESA.

Estas investigações trouxeram novos conhecimentos sobre as galáxias anãs que orbitam a Via Láctea, incluindo uma das mais próximas: a Grande Nuvem de Magalhães. Os dados do Gaia provaram que esta nuvem é mais massiva do que se pensava, com cerca de 10% da massa da Via Láctea. O Gaia também mostrou o quanto esta galáxia inesperadamente volumosa influencia os movimentos de objetos mais afastados no halo da Via Láctea, distorcendo as estimativas da massa da nossa Galáxia que derivam do estudo destas galáxias satélite.

A nossa imagem da Via Láctea vai ficando cada vez melhor à medida que o Gaia vai fornecendo mais dados. Há ainda grandes incertezas em redor da sua massa total, com estimativas que variam entre algumas centenas de milhar de milhões e alguns biliões de vezes a massa do Sol. Mas à medida que o Gaia continua a explorar o nosso lar cósmico e os seus componentes, compreenderemos melhor as complicadas partes distantes da nossa Galáxia.

Refinando a forma da nossa Galáxia

O Gaia clarificou o aspeto da nossa Galáxia, fornecendo uma visão mais exata da sua forma e simetria – ou falta dela.

A Via Láctea é uma galáxia espiral com uma “barra” central de estrelas que atravessa o seu núcleo, vários braços espirais e um halo mais difuso que se estende para o exterior. Supunha-se que este halo era geralmente esférico e homogéneo, como uma bola de praia. No entanto, o Gaia mostrou que o halo da Via Láctea parece alongado, inclinado e esticado, como uma bola de râguebi que acabou de ser chutada.

Os cientistas do Gaia também mapearam a estrutura geral da barra central da Via Láctea e dos braços espirais rodopiantes, aperfeiçoando a nossa compreensão do seu comprimento, inclinação e assimetria.

Além disso, sabemos desde a década de 1950 que o disco da Via Láctea é deformado e assimétrico, mas não sabíamos porquê. O Gaia revelou que esta deformação é provocada por uma colisão em curso com outra galáxia mais pequena – provavelmente a galáxia anã de Sagitário, que já atravessou o disco da nossa Galáxia três vezes no passado. Sagitário orbita a nossa Galáxia há 4 a 5 mil milhões de anos e está a ser lentamente desfeita por uma fusão em curso.

Estas colisões enviaram ondulações disruptivas que se espalharam pela Via Láctea como uma pedra atirada à água, fazendo com que a Galáxia se deformasse e oscilasse. Podem ter sido o gatilho que provocou a formação do Sol e do Sistema Solar: outro resultado do Gaia. De acordo com o Gaia, as ondulações causadas pela influência de Sagitário levaram a múltiplos surtos de formação estelar, um dos quais se alinha no tempo com a altura em que pensamos que o Sol se formou, há cerca de 4,6 mil milhões de anos.

O Gaia mostrou que a Via Láctea ainda está a sofrer algumas das ondulações causadas por uma quase colisão com Sagitário, que fez com que as estrelas no disco da Galáxia se movessem em padrões distintos. Para algumas estrelas, o Gaia mede não só a sua posição no espaço, mas também os seus movimentos completos em três dimensões. Nestes dados, os investigadores identificaram um padrão nunca antes visto que se parece um pouco com a concha de um caracol. Um estudo mais aprofundado levou à conclusão de que as estrelas se “lembravam” de terem sido perturbadas por Sagitário no passado, e ainda mostram sinais disso nos seus movimentos atuais.

A galáxia anã de Sagitário orbita a Via Láctea há milhares de milhões de anos. À medida que a sua órbita em torno da Via Láctea, 10.000 mais massiva, se foi estreitando, começou a colidir com o disco da nossa Galáxia. De acordo com um novo estudo, as três colisões conhecidas entre Sagitário e a Via Láctea desencadearam grandes episódios de formação estelar, um dos quais poderá ter dado origem ao Sistema Solar.
Crédito: ESA

Juntando as peças da nossa árvore genealógica

Sagitário não é a única galáxia que influenciou a Via Láctea. A história inicial da nossa Galáxia é turbulenta; começou a formar-se há mais de 13 mil milhões de anos e tornou-se maior e mais massiva ao fundir-se com outras galáxias ao longo do tempo. À medida que as galáxias são incorporadas na Via Láctea, o seu material forma correntes de estrelas que se deslocam no espaço ao longo de trajetórias distintas; cada corrente é caracterizada por químicas diferentes.

O Gaia revelou esta “árvore genealógica” de galáxias mais pequenas que ajudaram a fazer da Via Láctea o que ela é hoje. Crucialmente, o Gaia descobriu que a Via Láctea se fundiu com uma galáxia, designada Gaia-Salsicha-Encélado, no início da sua formação – um grande avanço na nossa compreensão da história Galáctica. As 30.000 estrelas com movimentos estranhos que revelaram esta fusão rodeiam-nos quase por completo; todas se movem de forma muito diferente da maioria das outras estrelas da Via Láctea, movendo-se “para dentro e para fora” em vez de “à volta”. A Via Láctea e Gaia-Salsicha-Encélado fundiram-se há cerca de 10 mil milhões de anos, e este acontecimento moldou significativamente a forma e a evolução da nossa Galáxia desde então.

Os dados do Gaia também revelaram outro evento de fusão, Arjuna/Sequoia/I’itoi, que provavelmente ocorreu numa fase semelhante à de Gaia-Salsicha-Encélado. Pensa-se que este evento encheu o halo da jovem Via Láctea com enxames globulares e estrelas antigas de alta velocidade, todas a moverem-se de forma estranha e a orbitarem no sentido “errado” – na direção oposta à rotação da espiral. Arjuna/Sequoia/I’itoi e Gaia-Salsicha-Encélado podem ter sido galáxias associadas – talvez um par binário – antes de se fundirem com a Via Láctea.

Um estudo posterior do Gaia definiu seis grupos estelares distintos, representando seis fusões diferentes: as já mencionadas anã de Sagitário, Gaia-Salsicha-Encélado e Arjuna/Sequoia/I’itoi, Baleia, GNM-1/Wukong e Ponto. Pensa-se que a maioria tenha ocorrido há oito-dez mil milhões de anos atrás, sendo que apenas Sagitário é mais recente. Outro estudo, utilizando dados do Gaia, explorou uma população de enxames globulares e descobriu que estes se alinham bem com uma sétima fusão prevista. Esta fusão terá sido talvez a mais antiga a ocorrer há cerca de 11 mil milhões de anos, com uma galáxia agora referida como “Kraken”.

Além disso, o Gaia revelou que algumas partes da Via Láctea são muito mais antigas do que se esperava e que houve duas fases-chave da história Galáctica. A primeira começou menos de mil milhões de anos após o Big Bang, quando as estrelas se começaram a formar num disco espesso. Dois mil milhões de anos mais tarde, foi desencadeada aqui uma segunda fase de formação estelar, bem como no halo e no disco mais fino. Pensa-se que esta segunda fase foi despoletada quando Gaia-Salsicha-Encélado colidiu com a Via Láctea.

Esta imagem mostra a Via Láctea vista pelo Gaia. Os quadrados representam a localização de enxames globulares, os triângulos a localização de galáxias satélite e os pequenos pontos são correntes estelares. Os pontos e quadrados a roxo são objetos trazidos para a Via Láctea pela fusão com a galáxia Ponto.
Crédito: ESA/Gaia/DPAC

O Gaia também lançou o seu olhar sobre as galáxias companheiras mais pequenas que se encontram atualmente no espaço próximo. Estas incluem a Grande e a Pequena Nuvem de Magalhães e dezenas de outras galáxias anãs que se pensa estarem a orbitar a Via Láctea. No entanto, o Gaia estudou 40 destas companheiras e descobriu que se movem muito mais depressa do que as estrelas gigantes e os enxames de estrelas que se sabe estarem a orbitar a nossa Galáxia; isto significa que podem ser visitantes que só chegaram à nossa vizinhança nos últimos milhares de milhões de anos.

Características intrigantes e surpreendentes

A Via Láctea está repleta de fascinantes estruturas onduladas feitas de gás, cavidades vazias no espaço, surtos de formação estelar, grupos de enxames de estrelas que giram em torno do núcleo da Via Láctea, vizinhanças estranhas cheias de estrelas antigas e sinais remanescentes de braços espirais “fossilizados”. Todas estas características, e outras, foram detetadas e exploradas pelo Gaia.

Em 2020, o Gaia detetou a maior estrutura gasosa jamais vista na nossa Galáxia: um conjunto longo, fino e ondulante de berçários estelares interligados, localizado no braço espiral próximo da Terra. Embora esta onda exista há muitos milhões de anos, os cientistas precisavam dos dados do Gaia sobre a estrutura 3D da Via Láctea para a encontrar e revelar a sua forma.

As medições precisas do Gaia, das posições e movimentos das estrelas, revelaram também a forma e a espessura das regiões de formação estelar em três dimensões – a primeira vez que estas chamadas nuvens moleculares foram cartografadas desta forma.

O mapeamento posterior revelou a origem e o impacto da Bolha Local, uma zona de espaço relativamente vazio, em forma de amendoim, que o Sol atravessa na sua órbita através da Via Láctea. Há já algum tempo que sabemos da existência da Bolha Local, mas o Gaia descobriu mais detalhes. Os cientistas do Gaia descobriram que uma série de explosões estelares empurraram o gás para fora, criando esta bolha e desencadeando a formação de todas as jovens estrelas que vemos na nossa vizinhança Galáctica.

Ilustração artística da Bolha Local com formação de estrelas a ocorrer na superfície da bolha. Os cientistas mostraram agora como uma cadeia de acontecimentos, iniciada há 14 milhões de anos com um conjunto de poderosas supernovas, levou à criação da vasta bolha, responsável pela formação de todas as jovens estrelas num raio de 500 anos-luz do Sol e da Terra. Crédito: CfA, Leah Hustak (STScI)

Olhando mais longe na Via Láctea, os cientistas utilizaram os dados do Gaia para mapear estruturas no disco exterior da nossa Galáxia, revelando um grande número de filamentos giratórios. Os cientistas sugerem que estes filamentos são, de facto, os remanescentes de braços espirais do passado. Estas estruturas ficaram excitadas ao longo do tempo, à medida que diferentes galáxias satélites passavam e interagiam com a nossa Galáxia, provocando a sua rotação.

Paralelamente às estruturas, o Gaia está a observar de perto as estrelas. A missão encontrou milhares de novos enxames estelares, muitos mais do que os que conhecíamos anteriormente, graças à aplicação pelos cientistas de novas técnicas de aprendizagem de máquina aos dados do Gaia. Numa das descobertas mais importantes, os astrónomos utilizaram os dados do Gaia para fazer “arqueologia galáctica” e descobrir que o núcleo da Via Láctea está cheio de estrelas verdadeiramente antigas: tão antigas que não possuem os metais mais pesados criados mais tarde na vida do Universo. Os investigadores identificaram estas estrelas explorando dois milhões de estrelas gigantes brilhantes nas regiões interiores da nossa Galáxia, mapeando o “pobre coração velho” da Via Láctea.

A ponta do icebergue

Estas descobertas são apenas alguns dos resultados inovadores do Gaia. Estas e outras resultaram numa visão renovada, mais clara e mais detalhada da estrutura, conteúdo e história da Via Láctea, dando-nos uma compreensão muito mais completa da nossa Galáxia.

“Para além de refinar e desmistificar algumas das coisas que já sabíamos, o Gaia questionou e, em última análise, rejeitou uma série de suposições que tínhamos sobre a Via Láctea”, diz Paul McMillan da Universidade de Leicester. “Não é exagero dizer que o Gaia está a reescrever a história cósmica”.

O Gaia lança dados em lotes. O primeiro, o segundo, parte do terceiro e a totalidade do terceiro foram lançados em 2016, 2018, 2020 e 2022, respetivamente, com um subsequente FPR (“focused product release”) há apenas alguns meses. Este texto centra-se nas descobertas feitas desde o terceiro lançamento de dados do Gaia em 2020 e reflete apenas uma seleção da investigação proveniente da missão.

// ESA (comunicado de imprensa)

Saiba mais:

Via Láctea:
Wikipedia
SEDS
Lista de correntes estelares da Via Láctea (Wikipedia)

Galáxia satélite:
Wikipedia

Galáxias satélites da Via Láctea:
Wikipedia

Grande Nuvem de Magalhães:
Wikipedia
SEDS

Anã de Sagitário:
SolStation.com
Wikipedia

Gaia-Salsicha-Encélado:
Wikipedia

Matéria escura:
Wikipedia

Gaia:
ESA
ESA – 2
Gaia/ESA
Programa Alertas de Ciência Fotométrica do Gaia
Catálogo DR3 do Gaia
Wikipedia

Sobre Miguel Montes

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