Uma explicação surpreendentemente simples para a estranha órbita do cometa interestelar ‘Oumuamua

Em 2017, um misterioso cometa chamado ‘Oumuamua despertou a imaginação tanto dos cientistas como do público em geral. Foi o primeiro visitante conhecido de fora do nosso Sistema Solar, não tinha cabeleira ou cauda de poeira brilhante, como a maioria dos cometas, e uma forma peculiar – algo entre um charuto e uma panqueca – e o seu pequeno tamanho era mais adequado a um asteroide do que a um cometa.

Mas o facto de estar a afastar-se cada vez mais depressa do Sol, algo que os astrónomos e cientistas não conseguiam explicar, deixou-os perplexos, levando alguns a sugerir que se tratava de uma nave espacial alienígena.

Ilustração do cometa interestelar ‘Oumuamua, à medida que aqueceu na sua aproximação ao Sol e libertou hidrogénio (névoa branca), o que alterou ligeiramente a sua órbita. O cometa, muito provavelmente em forma de panqueca, é o primeiro objeto conhecido, sem contar com os grãos de poeira, a visitar o nosso Sistema Solar oriundo de outra estrela.
Crédito: NASA, ESA e Joseph Olmsted e Frank Summers do STScI

Agora, uma astroquímica da Universidade da Califórnia em Berkeley e um astrónomo da Universidade de Cornell argumentam que o misterioso comportamento do cometa, ao invés de ter um percurso hiperbólico em torno do Sol, pode ser explicado por um mecanismo físico simples, provavelmente comum entre muitos cometas gelados: a libertação de hidrogénio à medida que o cometa aquecia à luz do Sol.

O que tornou ‘Oumuamua diferente de todos os outros cometas bem estudados no nosso Sistema Solar foi o seu tamanho: era tão pequeno que a sua deflexão gravitacional em torno do Sol foi apenas ligeiramente alterada quando o hidrogénio gasoso foi libertado do gelo.

A maioria dos cometas são essencialmente bolas de neve sujas que periodicamente se aproximam do Sol a partir do Sistema Solar exterior. Quando aquecido pela luz solar, um cometa ejeta água e outras moléculas, produzindo um halo ou cabeleira brilhante à sua volta e muitas vezes caudas de gás e poeira. Os gases ejetados atuam como uma espécie de propulsor de uma nave espacial para dar ao cometa um pequeno pontapé que altera a sua trajetória ligeiramente em relação às órbitas elípticas típicas de outros objetos do Sistema Solar, tais como asteroides e planetas.

Quando foi descoberto, ‘Oumuamua não tinha cabeleira ou cauda, era demasiado pequeno e estava demasiado afastado do Sol para capturar energia suficiente para ejetar muita água, o que levou os astrónomos a especular intensamente acerca da sua composição e do que o estava a empurrar para longe. Seria um “iceberg” de hidrogénio, a ejetar H2? Um grande e “fofo” floco de neve empurrado por uma leve pressão do Sol? Uma vela solar criada por uma civilização alienígena? Uma nave espacial com a sua própria fonte de energia?

Jennifer Bergner, professora assistente de química na Universidade da Califórnia em Berkeley, que estuda as reações químicas que ocorrem nas rochas geladas no frio vácuo do espaço, pensou que talvez houvesse uma explicação mais simples. Ela abordou o assunto com um colega, Darryl Seligman, agora pós-doutorado na Universidade de Cornell, e decidiram trabalhar em conjunto para a testar.

“Um cometa que viaja através do meio interestelar está basicamente a ser ‘cozinhado’ pela radiação cósmica, como resultado formando hidrogénio. O nosso pensamento foi: se isto estivesse a acontecer, poderia realmente aprisioná-lo no corpo, de modo a que quando entrasse no Sistema Solar e fosse aquecido, o hidrogénio fosse libertado?” disse Bergner. “Poderá isso produzir quantitativamente a força de que necessita para explicar a aceleração não-gravitacional?”

Surpreendentemente, descobriu que investigações experimentais publicadas nas décadas de 1970, 1980 e 1990 demonstraram que quando o gelo é atingido por partículas altamente energéticas semelhantes aos raios cósmicos, é abundantemente produzido hidrogénio molecular (H2) e aprisionado no interior do gelo. De facto, os raios cósmicos podem penetrar dezenas de metros no gelo, convertendo um-quarto ou mais da água em hidrogénio gasoso.

“Para um cometa com vários quilómetros em diâmetro, a emissão de gases seria de uma concha realmente fina em relação à maior parte do objeto, portanto, em termos de composição como em termos de qualquer aceleração, não se esperaria necessariamente que isso fosse um efeito detetável”, disse. “Mas dado que ‘Oumuamua era tão pequeno, pensamos que na realidade produziu força suficiente para alimentar esta aceleração”.

Pensa-se que o cometa, ligeiramente avermelhado, tinha cerca de 115 por 111 por 19 metros em tamanho. Embora as dimensões relativas fossem bastante precisas, os astrónomos não podiam ter a certeza do tamanho real porque era demasiado pequeno e estava demasiado distante para que os telescópios o resolvessem. O tamanho tinha de ser estimado a partir do brilho do cometa e da forma como o brilho mudava à medida que o cometa girava. Até à data, todos os cometas observados no nosso Sistema Solar – os cometas de curto período, originários da cintura de Kuiper e os cometas de longo período, da mais distante nuvem de Oort – variam entre cerca de 1 a muitos quilómetros.

“O que a ideia de Jenny tem de incrível é que é exatamente o que deveria acontecer aos cometas interestelares”, disse Seligman. “Tínhamos todas estas ideias estúpidas, como icebergues de hidrogénio e outras coisas loucas, e é apenas a explicação mais genérica”.

Bergner e Seligman publicaram as suas conclusões esta semana na revista Nature. Ambos eram pós-doutorados na Universidade de Chicago quando começaram a colaborar no artigo.

Impressão de artista do objeto interestelar ‘Oumuamua. As observações, desde a sua descoberta em 2017, mostram que o objeto desviou-se ligeiramente da trajetória que estaria a seguir se estivesse apenas sob a influência do Sol e dos planetas. Os investigadores assumem que a libertação de material da sua superfície, devido ao aquecimento pelo Sol, é responsável por este comportamento. Esta libertação de gás pode ser vista na impressão de artista como uma nuvem subtil. Anteriormente, ‘Oumuamua tinha sido classificado como asteroide, mas esta libertação de gases é mais típica dos cometas.
Crédito: ESA/Hubble, NASA, ESO, M. Kornmesser

Mensageiro de longe

Os cometas são rochas geladas que sobraram da formação do Sistema Solar, há 4,5 mil milhões de anos, de modo que contam aos astrónomos mais acerca das condições na altura. Os cometas interestelares também podem fornecer pistas sobre as condições em torno de outras estrelas rodeadas por discos de formação planetária.

“Os cometas preservam um instantâneo de como o Sistema Solar era quando tinha o seu disco protoplanetário”, disse Bergner. “O seu estudo é uma maneira de olhar para trás e de ver como o Sistema Solar era na fase inicial de formação”.

Os sistemas planetários distantes também parecem ter cometas e muitos são suscetíveis de serem ejetados devido a interações gravitacionais com outros objetos do sistema, o que os astrónomos sabem que aconteceu ao longo da história do nosso Sistema Solar. Alguns destes cometas fugitivos podem, ocasionalmente, entrar no nosso Sistema Solar, proporcionando uma oportunidade de aprender mais sobre a formação planetária noutros sistemas.

“Os cometas e os asteroides do Sistema Solar ensinaram-nos, sem dúvida, mais sobre a formação planetária do que aprendemos com os próprios planetas”, disse Seligman. “Penso que os cometas interestelares poderiam indiscutivelmente dizer-nos mais sobre os exoplanetas do que os próprios exoplanetas, que estamos a tentar medir hoje em dia, podem”.

No passado, os astrónomos publicaram vários artigos científicos sobre o que podemos aprender com a não observação de cometas interestelares no nosso Sistema Solar.

E depois, ‘Oumuamua apareceu.

No dia 19 de outubro de 2017, na ilha de Maui, os astrónomos utilizando o telescópio Pan-STARRS1, operado pelo Instituto de Astronomia da Universidade do Hawaii em Manoa, repararam primeiro no que pensavam ser ou um cometa ou um asteroide. Quando perceberam que a sua órbita inclinada e alta velocidade – 87 km/s – implicava que vinha de fora do nosso Sistema Solar, deram-lhe o nome 1I/’Oumuamua, havaiano para “mensageiro de longe que chega primeiro”. Foi o primeiro objeto interestelar, sem contar com os grãos de poeira, alguma vez visto no nosso Sistema Solar. Um segundo, 2I/Borisov, foi descoberto em 2019, embora parecesse e se comportasse mais como um cometa típico.

À medida que cada vez mais telescópios apontavam para ‘Oumuamua, os astrónomos foram capazes de rastrear a sua órbita e determinar que este já tinha dado a volta ao Sol e estava a sair do Sistema Solar.

Tendo em conta que o brilho de ‘Oumuamua mudou periodicamente por um factor de 12 e variou assimetricamente, presumiu-se que era altamente alongado e que girava caoticamente. Os astrónomos também notaram uma ligeira aceleração, para longe do Sol, maior do que a vista para os asteroides e mais característica dos cometas. Quando os cometas se aproximam do Sol, a água e os gases expelidos da superfície criam uma cabeleira brilhante e gasosa e libertam poeira no processo. Tipicamente, a poeira deixada no rastro do cometa torna-se visível como uma cauda, enquanto o vapor e a poeira empurrados pela leve pressão dos raios solares produzem uma segunda cauda que aponta para longe do Sol, mais um pequeno empurrão inercial para fora. Outros compostos também podem ser libertados, tais como materiais orgânicos presos e monóxido de carbono.

Porque é que estava a acelerar?

Mas os astrónomos não conseguiram detetar nenhuma cabeleira, moléculas expelidas nem poeira em torno de ‘Oumuamua. Além disso, os cálculos mostraram que a energia solar que atingia o cometa seria insuficiente para sublimar a água ou os compostos orgânicos da sua superfície para lhe dar o “pontapé” não gravitacional observado. Apenas gases hipervoláteis como H2, N2 ou monóxido de carbono (CO) podem fornecer aceleração suficiente para corresponder às observações, dada a energia solar recebida.

“Nunca tínhamos visto um cometa no Sistema Solar que não tivesse uma cabeleira de poeira. Portanto, a aceleração não gravitacional foi realmente estranha”, disse Seligman.

Isto levou a muita especulação acerca das moléculas voláteis no cometa que conseguissem explicar a aceleração. O próprio Seligman publicou um artigo argumentando que se o cometa fosse composto de hidrogénio sólido – um iceberg de hidrogénio – ele iria libertar hidrogénio suficiente no calor do Sol para explicar a estranha aceleração. Nas condições certas, um cometa composto por azoto sólido ou monóxido de carbono sólido também libertaria gases com força suficiente para afetar a órbita do cometa.

Mas os astrónomos tiveram de se “esticar” para explicar que condições poderiam levar à formação de corpos sólidos de hidrogénio ou azoto, que nunca tinham sido observados antes. E como poderia um corpo sólido de H2 sobreviver durante talvez 100 milhões de anos no espaço interestelar?

Bergner pensou que a libertação de hidrogénio preso no gelo poderia ser suficiente para acelerar ‘Oumuamua. Como experimentalista e teórica, ela estuda a interação do gelo muito frio – a 5 ou 10 K, a temperatura do meio interestelar – com os tipos de partículas energéticas e radiação aí encontradas.

Ao pesquisar publicações anteriores, encontrou muitas experiências demonstrando que os eletrões altamente energéticos, protões e átomos mais pesados poderiam converter água gelada em hidrogénio molecular, e que a estrutura “fofa” e em bola de neve de um cometa poderia prender o gás em bolhas dentro do gelo. As experiências mostraram que quando aquecido, como pelo calor do Sol, o gelo muda de uma estrutura amorfa para uma estrutura cristalina e força as bolhas para fora, libertando o hidrogénio gasoso. O gelo à superfície de um cometa, calcularam Bergner e Seligman, poderia emitir gás suficiente, quer num feixe colimado ou em forma de leque, para afetar a órbita de um pequeno cometa como ‘Oumuamua.

“A principal conclusão é que ‘Oumuamua é consistente com um cometa interestelar padrão que acabou de sofrer um processamento pesado”, disse Bergner. “Os modelos que corremos são consistentes com o que vemos no Sistema Solar a partir de cometas e asteroides. Por isso, poderíamos essencialmente começar com algo que se pareça com um cometa e ver este cenário funcionar”.

A ideia também explica a ausência de uma cabeleira de poeira.

“Mesmo que houvesse poeira na matriz de gelo, não estamos a sublimar o gelo, estamos apenas a rearranjar o gelo e depois a deixar o H2 ser expelido. Portanto, a poeira não vai ser libertada”, disse Seligman.

Cometas “escuros”

Seligman disse que a sua conclusão acerca da origem da aceleração de ‘Oumuamua deverá encerrar o debate acerca do cometa. Desde 2017, ele, Bergner e colegas identificaram outros seis pequenos cometas sem cabeleira observável, mas com pequenas acelerações não gravitacionais, sugerindo que tais cometas “escuros” são comuns. Embora o H2 não seja provavelmente responsável pelas acelerações dos cometas escuros, salientou Bergner, juntamente com ‘Oumuamua eles revelam que há muito a aprender sobre a natureza dos corpos pequenos do Sistema Solar.

Um destes cometas escuros, 1998 KY26, é o próximo alvo da missão japonesa Hayabusa2, que recentemente recolheu amostras do asteroide Ryugu. 1998 KY26 era considerado um asteroide até ser identificado como um cometa escuro em dezembro.

“A Jenny está definitivamente correta acerca do hidrogénio aprisionado. Ninguém tinha pensado nisso antes”, disse. “Tendo em conta a descoberta de outros cometas escuros no Sistema Solar e a fantástica ideia da Jenny, penso que tem de estar correta. A água é o componente mais abundante dos cometas no Sistema Solar e provavelmente também noutros sistemas exosolares. E se colocarmos um cometa rico em água na nuvem de Oort ou o ejetarmos para o meio interestelar, deveremos obter gelo amorfo com bolhas de H2“.

Dado que o H2 deve formar-se em qualquer corpo rico em gelo exposto à radiação energética, os investigadores suspeitam que o mesmo mecanismo estaria a funcionar nos cometas que se aproximam do Sol a partir da nuvem de Oort, no Sistema Solar exterior, onde os cometas são irradiados pelos raios cósmicos, de modo idêntico a um cometa interestelar. Observações futuras da libertação de hidrogénio em cometas de longo período podem ser utilizadas para testar o cenário de formação e aprisionamento de H2.

O LSST (Legacy Survey of Space and Time) do Observatório Vera Rubin deverá descobrir muitos mais cometas interestelares e escuros, permitindo aos astrónomos determinar se a libertação de hidrogénio é comum nos cometas. Seligman calculou que o levantamento telescópico, que deverá estar operacional no Chile no início de 2025, poderá detetar entre um e três cometas interestelares como ‘Oumuamua todos os anos, e provavelmente muitos mais com uma cabeleira, como Borisov.

// Universidade da Califórnia em Berkeley (comunicado de imprensa)
// Universidade de Cornell (comunicado de imprensa)
// Artigo científico (Nature)

Saiba mais:

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Scientific American
TIME

‘Oumuamua:
NASA/JPL
Wikipedia

2I/Borisov:
NASA/JPL
Wikipedia

Objeto interestelar:
Wikipedia

Cometas:
Wikipedia

Pan-STARRS:
STScI
Instituto de Astronomia da Universidade do Hawaii
Wikipedia

Observatório Vera C. Rubin:
Página principal
Wikipedia
LSST (página principal)

Sobre Miguel Montes

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